CONJUR • 30 de dezembro de 2024
Fonte da Notícia: CONJUR
Data da Publicação original: 28/12/2024
Publicado Originalmente em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-28/decisao-conveniente-ou-um-problema-regulatorio-a-questao-da-retroatividade-das-normas-de-medicina-do-mec/
Na reunião do Conselho Nacional de Educação realizada nesta semana, foram debatidos diversos temas de grande relevância. Entre os destaques, figurou a análise de recursos apresentados por instituições de ensino superior (IES) que buscavam reverter decisões de indeferimento de cursos de Medicina. O que mais chamou a atenção, contudo, foi a guinada do CNE em relação à aplicação retroativa de normas.
A flexibilização do princípio tempus regit actum, nos lembrou da narrativa de Dionísio, governante de Siracusa no século 4 a.C. Diz-se que Dionísio quis punir severamente um de seus inimigos, Damócles, acusando-o de traição. Para justificar sua punição e demonstrar seu poder, Dionísio adotou uma política que, em teoria, seria aplicada a todos: qualquer pessoa que conspirasse ou falasse contra o tirano seria condenada à morte.
Damócles foi condenado com base nessa regra. Contudo, mais tarde, essa mesma lei passou a ser usada por adversários de Dionísio dentro de sua própria corte, que aplicaram o princípio contra ele, alegando que o próprio tirano conspirava contra o bem-estar do Estado. Essa inversão deixou Dionísio em uma posição precária, ilustrando como uma decisão casuísta para punir um adversário pode se voltar contra quem a aplicou, se generalizada.
Ao relativizar o princípio da irretroatividade das normas, tratando-o como se fosse um conceito anacrônico e prejudicial à política educacional brasileira, o CNE pode ter instaurado um ambiente de profunda incerteza. O desdém por essa regra, que assegura a aplicação do regime jurídico vigente à época do protocolo, não apenas desafia fundamentos jurídicos, mas também representa uma ameaça grave à estabilidade do sistema federal de ensino.
O princípio latino tempus regit actum orienta que “o tempo rege o ato”, ou seja, estabelece que os atos devem ser regulados pelas leis que estavam em vigor quando foram praticados. Em outras palavras, a validade, os efeitos e os requisitos de um ato jurídico devem ser avaliados conforme a legislação vigente à época de sua realização.
Essa garantia é importantíssima na regulação e supervisão educacional, pois quando a iniciativa privada decide ofertar algum curso ou credenciar alguma instituição ela precisa ter o mínimo de segurança de que as regras existentes serão válidas até o final do processo. Na verdade, desde 2007, no mínimo, o MEC faz um grande esforço para que a criação e manutenção das instituições de ensino seja fruto de um planejamento bem claro, por meio de documentos, como a Plano de Desenvolvimento Institucional e os Projetos Pedagógicos.
Para fazer esse planejamento a segurança das mantenedoras reside justamente na confiança de que as normas educacionais vigentes quando os investimentos foram feitos serão cumpridas, independentemente do governo que estará à frente do Ministério da Educação.
Com a flexibilização do tempus regit actum: haverá uma enorme insegurança em relação aos rumos que o mercado educacional irá tomar. E, tal qual na narrativa de Dionísio, o problema não se resume às IES que pleiteiam cursos de medicina, mas a todas. E não só: os estudantes e o poder público perderão também.
Não há dúvida de que qualquer governo busca impor sua visão política em qualquer área, seja a educacional, econômica, de saúde ou segurança pública. Nas áreas reguladas, como a educação, isso ocorre com mais intensidade, por isso torna-se ainda mais importante a estabilidade e segurança jurídica, que só ocorre quando o princípio da irretroatividade das normas é respeitado.
Na prática, alterações nas regras de regulação, avaliação ou supervisão, caso aplicadas imediatamente após a publicação, tornariam a gestão dos cursos e das instituições de ensino inviável. O Poder Judiciário, por exemplo, sabe que o mesmo se aplica aos estudantes, afinal é comum o veto à aplicação imediata de mudanças curriculares que tragam prejuízo aos alunos. E o CNE também tem essa clareza, pois é comum ver nas resoluções sobre Diretrizes Curriculares regras de transição que prestigiam as situações consolidadas ou até as expectativas já criadas.
A insegurança jurídica causada por mudanças bruscas da legislação prejudica inclusive o próprio Estado. Um exemplo é o caso de medicina, responsável pela atual flexibilização casuísta do tempus regit actum: um programa de Estado de inegável importância social e criado por uma lei, o Mais Médicos foi paralisado por cinco anos por uma simples portaria. A chamada “moratória” instituída pela Portaria 328/2018 foi descrita com imensa precisão pelo Ministro Gilmar Mendes ao relatar a ADC nº 81, pois ela, nas palavras do ministro, “representava justamente o total bloqueio da política pública inaugurada pela Lei 12.871/2013” sendo a bem da verdade “a negação da própria política indutora prevista no diploma impugnado [Lei 12.871/2013]”. Esse é o problema das alterações bruscas de políticas públicas.
Os recorrentes sobrestamentos de processos regulatórios (ex. Direito, EAD e Medicina) também expõem esse risco. Instituições que confiaram nas políticas públicas vigentes à época tiverem seus processos travados e agora aguardam uma norma nova, que aparentemente deve ser aplicada aos seus processos, sem qualquer respeito ao tempus regit actum. Políticas Públicas na área de ensino podem ser uma questão de governo, mas a tramitação regulatória é questão de Estado.
Por isso, talvez, a própria consultoria jurídica do MEC já se manifestou a favor da irretroatividade das normas. Veja-se o Parecer 00863/2023/CONJUR-MEC/CGU/AGU, no qual foi afirmado que “a norma revogadora tem efeitos para o futuro e não alcança relações jurídicas iniciadas na vigência da norma revogada. […] a norma produziu efeitos no tempo e regulou situações jurídicas, criando direitos e deveres para os envolvidos, com possíveis direitos adquiridos em casos concretos que merecem análise individualizada pela Administração.”
Assim, o próprio MEC, ao contrário do decidido em recurso pelo CNE, reconhece a importância do princípio, mesmo que o faça de forma episódica, olvidando o caso específico da recente regulação de medicina.
Tudo isso vem à mente quando o CNE cria esse argumento, ou nova diretriz, de legitimação da retroatividade. A primeira impressão é de que a manobra feita para validar as normas do MEC neste ruidoso caso dos cursos de medicina pode ser um remédio amargo demais, um problema para o as instituições de ensino, os alunos e o sistema federal de educação, no médio e no longo prazo.
A narrativa de Dionísio nos ensina que a flexibilizar garantias pode gerar efeitos terríveis, inclusive para quem tem o poder e o papel de negar essas garantias. Essa é a reflexão que se espera do Conselho Nacional de Educação.