A omissão do Estado e a abertura dos cursos de medicina

CONJUR • 25 de setembro de 2024

Fonte da Notícia: CONJUR
Data da Publicação original: 24/09/2024
Publicado Originalmente em: https://www.conjur.com.br/2024-set-24/a-omissao-do-estado-e-a-abertura-dos-cursos-de-medicina/

Felizmente, o Ministério da Educação, hoje, é um órgão ativo e atuante na regulação dos cursos de Medicina. Após a publicação de diversas normas no final de 2023, atualmente os pedidos de autorização de curso estão sendo concluídos em um ritmo constante desde julho deste ano, um inegável acerto do ministério. Concorde-se ou não com as decisões, certo é que há um reconhecimento unânime das IES (instituições de ensino superior) em relação à mudança de atitude do MEC.

Essa atitude propositiva também foi demonstrada, recentemente, em um artigo publicado sobre os aspectos regulatórios das autorizações de medicina. Neste artigo, que merece ser lido na íntegra, não obstante a qualidade dos autores do trabalho, há alguns pontos que demandam debate.

Chama atenção, de pronto, a forma como a Seres trata o contexto atual, chamado de “batalha jurídica que põe em risco a qualidade da educação e a saúde pública e fragiliza as legítimas expectativas dos estudantes”. Essa afirmação está equivocada.

O risco à saúde com a abertura de cursos previamente avaliados pelo MEC não existe, embora o uso desse argumento pelo ministério não seja novo. Sobre o assunto, o Superior Tribunal de Justiça afirmou em ementa:

  • “O funcionamento de uma turma até a realização, pelo Ministério da Educação, das diligências necessárias à verificação do atendimento dos requisitos indispensáveis à instalação do curso de medicina não tem o condão de causar lesão à saúde pública, mormente tendo em conta a positiva avaliação técnica realizada no local” (STJ. AgRg na SS: 1762 DF 2007/0172074-6, rel. ministro Humberto Gomes de Barros, julgado em 16/4/2008, grifamos).

Mesmo a decisão tendo ocorrido em 2008, a afirmação não poderia ser mais atual.

Contraste

Não há lógica na resistência em se autorizar novos cursos de Medicina bem avaliados ou retardá-la, pois isso, por certo, não melhora a saúde pública. A regulação não pode ter um sentido de confronto, retardamento ou bloqueio de atividades devidamente avaliadas. Talvez por isso o mesmo artigo citado acima reconhece que “a omissão do Estado na gestão da política de abertura de cursos de medicina criou um ambiente que demandou a intervenção do judiciário no sistema”.

A grandeza dessa constatação deve ser frisada. Tem muito mérito a compreensão do complexo contexto dos últimos dez anos, prazo que transcorreu desde a implementação das regras do Programa Mais Médicos para autorização de cursos de Medicina.

Esse reconhecimento, entretanto, contrasta com a discussão aberta sobre vestibulares abertos em virtude do atraso nos processos regulatórios. Para o Ministério da Educação, esses cursos estão sendo “autorizados por decisões monocráticas”, o que só pode ser uma confusão semântica, pois permitir a abertura de processo seletivo e o funcionamento das primeiras turmas, tal como o STJ já permitia em 2008, não equivale a autorizar um curso.

Entendimento do STF

Linguagem à parte, o fato relevante é que há muitos casos de atraso e descumprimento de ordens judiciais pelo ministério — situação que ocorre desde 2022, no mínimo. Esses problemas, frise-se, não surgem na gestão atual, mas foram reconhecidos recentemente pelo próprio STF ao analisar o tema dos processos seletivos de Medicina.

O MEC propôs três reclamações constitucionais afirmando que os primeiros vestibulares abertos contrariavam a ADC 81, mas a resposta do Supremo Tribunal Federal foi um contundente não. Em um desse casos, a RCL nº 67.271-BA, o ministro Flávio Dino afirmou que:

  • “Esta Corte possui precedentes no sentido de que decisões judiciais que autorizam a realização de exame vestibular por instituições que aguardam parecer final do Ministério da Educação não guardam aderência estrita com o assentado na ADC 81, na medida em que, na ADC 81, não houve expressa proibição para concessão de autorização judicial para realização de vestibular nos casos judicializados em virtude de excessiva demora na apreciação do requerimento por parte União”. (grifo do articulista)

As decisões da Suprema Corte reconheceram que o vestibular e o início dos cursos é uma medida coercitiva para que o ministério decida os procedimentos de autorização nos quais havia diversas ordens judiciais descumpridas. Na verdade, os magistrados que concederam as decisões coerentemente imaginaram que, se fosse criada uma urgência, o órgão julgaria rapidamente aqueles casos excepcionais de descumprimento e demora já comprovados.

Essa é a essência da medida coercitiva. Mas, por burocracia ou resistência, nem mesmo com determinação judicial e multas o MEC atuou. Não julgou os processos de autorização nem mesmo durante o lapso de tempo entre a decisão coercitiva e o fim dos vestibulares, permitindo, por omissão, o lançamento e a conclusão dos vestibulares. E vale lembrar mesmo após as decisões coercitivas a Seres optou por deixar a situação dos cursos precária ao não concluir de imediato os procedimentos administrativos em questão.

Diálogo

Tanto tempo já transcorreu que caberia aqui o uso da expressão “herança” para tratar da demora, mas ela não pode ser negligenciada e tem sido mantida, mesmo contra a vontade dos gestores mais atuantes. De fato, em 9 de maio de 2024 o próprio MEC requereu 120 dias para decidir todos os processos — fez isso perante o STF — mas hoje já se passaram 133 dias e, com todo o esforço feito, apenas um número próximo à metade dos processos administrativos foi decidido.

Sim, há burocracia e, com certeza, muito do que hoje está nas mãos dos reguladores da educação superior não foi resultado de erros ou omissões da atual gestão. O grande número de processos por atraso, entretanto, não é fruto da conduta das instituições de ensino ou do Poder Judiciário. Fatos são fatos e distorcê-los seria incorrer na maior mazela desses tempos modernos, seria tentar criar uma pós-verdade.

Outra justa preocupação do Ministério da Educação é que este estado de coisas “fragiliza as legítimas expectativas dos estudantes”, porém, infelizmente, o artigo também contribui para agravar a incerteza, especialmente quando afirma:

  • “os estudantes dos cursos abertos por decisões liminares e que venham ser indeferidos administrativamente não poderão ter aproveitamento dos estudos até então realizados, nem ser transferidos para outras instituições (não existem vagas ociosas em outras instituições regulares para receber esses alunos)”.

Ora, a jurisprudência costuma proteger os estudantes em caso de decisões judiciais autorizativas (ver decisão do STJ citada acima); o aproveitamento de estudos é uma garantia da LDB, que considera conhecimentos adquiridos dentro ou fora da educação escolar; e, certamente, existem vagas para transferência — talvez não milhares de vagas, mas também não se pode dizer que não existem vagas ociosas.

Há vagas em muitas instituições particulares e há também vagas em universidades públicas (ver quadro de vagas ociosas da UFSJ aqui e UniRio aqui, bem como quadro de vagas residuais da Ufop aqui). Dessa forma, os estudantes deveriam se sentir seguros, especialmente se todos os envolvidos assumirem suas responsabilidades.

Exemplo dessa postura responsável foi a atuação da AGU, que mesmo considerando à época irregulares os cursos em andamento e com portaria publicada, sugeriu que “em respeito à boa-fé objetiva e às expectativas legítimas de estudantes de medicina regularmente matriculados em cursos iniciados por força de decisões judiciais” fosse assegurado a eles a conclusão da graduação, sem prejuízo da fiscalização do MEC (Petição na ADC 81, de 23 de maio de 2023, grifo no original, disponível aqui).

No contexto atual não seria de se esperar nenhuma conduta diferente da União, até porque tudo continua como antes: existem decisões judiciais, configura-se a boa-fé objetiva e há legítimas expectativas dos estudantes.

Enfim, o artigo escrito pelos reguladores é importante para abrir o diálogo com a comunidade acadêmica e com a sociedade, não apenas para tratar dos meandros da regulação, mas para discutir o todo. Dialogar até mesmo sobre as falhas recentes e sobre a responsabilidade inafastável do Estado em relação a estudantes atendidos por bons cursos que o poder público insiste em não autorizar.


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