VALOR • 31 de março de 2023
Fonte da Notícia: VALOR
Data da Publicação original: 31/03/2023
Publicado Originalmente em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/03/31/brasil-pode-se-tornar-potencia-em-tecnologia-educacional-diz-professor.ghtml
A popularização de novas ferramentas como o ChatGPT, inclusive nas escolas, esconde o fato de que o Brasil e nações com nível de desenvolvimento semelhantes precisam passar por um passo extra na hora de pensar como a tecnologia pode ajudar, e não atrapalhar, o processo de aprendizado. O país pode, inclusive, ser um dos líderes na tarefa de pensar em como adaptar o uso da tecnologia para o ensino em países em desenvolvimento, ou Sul Global.
A avaliação é de Seiji Isotani, professor da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos e professor visitante em Harvard, nos Estados Unidos. Em sua opinião, o país tem, ao mesmo tempo, boas iniciativas nessa área, mas patina em questões básicas de estruturação de seu projeto pedagógico, algo que pode ser melhorado ou piorado com o uso da tecnologia.
“Muitas vezes, a gente tenta importar o conhecimento e a tecnologia do Norte e se esquece que elas não necessariamente funcionarem nosso contexto. É preciso ter capacidade de criar tecnologias pensando no contexto do Sul Global, e o Brasil tem todas as capacidades, intelectuais ou de recursos para se tornar grande potência nessa área”, afirma o pesquisador, especialista no desenvolvimento e aplicação de técnicas da computação para apoiar e transformar as atividades de ensino e aprendizagem.
Ele cita como exemplo uma ferramenta que vem sendo desenvolvida dentro do Plano Nacional de Recuperação da Aprendizagem para ajudar a detectar crianças vulneráveis e com alto risco de abandonar a escola. A ferramenta, afirma, chamou atenção do Banco Mundial, que tem interesse em levá-la a outros países.
“Depois da pandemia, muitas crianças tiveram dificuldade de voltar à escola. Questões ligadas à permanência, mas também à saúde emocional, aumentaram muito. O Brasil não tinha dados desse tipo de histórico dos alunos, então foi preciso criar uma tecnologia própria para fazer essa busca ativa.”
Isotani dá outros exemplos. Ele elogiou a iniciativa do governo de estruturar uma rede de inovação para a educação híbrida, que deve criar 56 polos no Brasil pesquisar e capacitar e professores, profissionais e gestores da área. Em outra área, uma ferramenta que auxilia na avaliação de tecnologias educacionais teria chamado a atenção do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). “Ela inverteu a lógica desse processo. Antes, um conjunto de especialistas avaliava a tecnologia, se fazia sentido no contexto brasileiro. Agora, é a empresa que produz evidências e os especialistas checam se o processo foi bem conduzido, o que acelera o processo”, diz.
A atenção em adaptar as tecnologias ao contexto local significa também evitar o desperdício de recursos em iniciativas bem ou mal intencionadas que, volta e meia, se tornam notícia. O caso mais recente, lembra, foi a compra, no ano passado, de kits de robótica para escolas em Alagoas que não tinham água ou acesso à internet. “Essas políticas vêm e morrem. E uma das várias respostas para esse problema é o fato de que a gente pensa em infraestrutura antes de ter uma visão sobre se aquilo é sustentável”, diz.
No ano passado, Isotani foi convidado pela universidade americana para lecionar duas disciplinas na Faculdade de Educação: “Inteligência Artificial aplicada à educação” e “Tecnologias educacionais e políticas públicas no Brasil e sul global”. Ele é um dos palestrantes da nona edição do Brazil Conference, realizado pela comunidade brasileira de estudantes em Boston para promover o país. O evento começa hoje e tem, entre seus organizadores, o presidente do Instituto Four e colunista do Valor, Wellington Vitorino.
Em relação à adaptação ao contexto local de tecnologias “de ponta” como o ChatGPT, o pesquisador ressalta que banir das escolas nunca é solução. “São ferramentas que aumentam a produtividade, a capacidade de processar informação e criação. Se a gente banir, estamos, em verdade, reduzindo a capacidade de treinarmos as habilidades digitais necessárias para mercado de trabalho no século XXI”, alerta.
Isotani defende de uma mudança da forma como se usa a inteligência artificial. Hoje, diz, ela é vista principalmente como forma de obter respostas corretas e rápidas. O ideal, diz, seria usá-lo como um “learning companion”, focado em ajudar no processo de aprendizado do dia a dia, em vez de uma cola eficiente para provas e trabalhos.
Esse debate, segundo ele, passa pela construção de uma legislação que ainda está engatinhando, mesmo nos países desenvolvidos. “Nos próximos meses, vamos começar a ver a construção de pedagogias que de fato consigam trabalhar com essas tecnologias. Atualmente, ela é utilizada ou como muleta ou suporte opcional. Está na hora de transformá-la em um elemento essencial dentro do contexto escolar”, afirma. “Quando a inteligência artificial é boa, ela é invisível. Essa camada a gente precisa construir.”